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por Daniela Avelar*

As mãos de Patrícia Galelli escrevem. Mas também apagam, desfazendo o caminho traçado. Ou refazendo novos. Sua mão digita, lê, vira páginas, papéis, livros, teclas, apaga, escreve e desescreve. 

 

Desescrever: palavra que o corretor teima em alterar para "desinscrever". Desinscrever seria desfazer uma inscrição gravada, remover na matéria a linguagem esculpida, talhada pouco a pouco? Desinscrever é remover o registro daquilo que nos escapa e que Patrícia consegue registrar em seus textos. Novas palavras (des)inscritas, vestígios da água ilógica: remove da visão os textos com liquid paper. Qual a lógica em um "papel líquido"? Uma sobreposição de matérias brancas que escondem, em partes, o que existia antes. Entre o líquido e o sólido surgem novas camadas de matéria ruidosa sobre o papel, em nuances distintas de branco: uma nova matéria de linguagem.  

 

Como seu livro desescrito sugere, a máquina de moer linguagem mais do que o livro, é a sua própria mão filósofa, uma vez que sua escrita, em muitos momentos, começa pelas mãos, em bilhetinhos escritos para si mesma; uma tentativa de fixar algum absurdo qualquer cotidiano. Um flerte com aquilo que há de surreal cravado na própria realidade: cabe todo mundo no coração do cansaço

 

Na realidade mais crua e palpável que é a do corpo: carne falsa. Patrícia toma o corpo como base para um empilhamento de órgãos, carne, mão, braço, sexo, corpo humano e corpo bicho: Um bicho que / A de animal; carne. Um ouvido escuta o outro.

 

Myse en abime: a localização do abismo. Espreitar esse limite, encontrar, na linguagem, essa geografia. Assim como o abismo jamais se revela por completo, as escritas curtas de Patrícia são certeiras: nada é sobra. A precisão na indefinição: nada é fixo. Definir é traçar um contorno bastante preciso e qualquer contorno forte demais acaba com a graça que é não saber onde uma coisa acaba e onde a outra começa.

 

"O abismo não nos separa, ele nos cerca". (Wislawa Szymborska)

 

Onde começa a escrita, a reescrita, o roubo – roubar de si mesma e dos outros?

Desescrever é escrever e apagar ao mesmo tempo.

E onde apaga, acaba, e começa outra vez.

* Daniela Avelar é artista visual e escritora. Doutoranda em Processos Artísticos Contemporâneos na UDESC, investiga em sua pesquisa a cor branca enquanto conceito e experiência, por meio de experimentos de restrição de escrita. Utiliza instrumentos literários em práticas ligadas às artes visuais, como a apropriação, uso e recontextualização. Integra o grupo-laboratório “de repente é bom ter um objetivo”, com Bil Lühmann, Marco Antonio Mota e Raquel Stolf, no qual realizam experimentos de escrita a partir das atividades do grupo Oulipo em oficinas no Sesc SP e na Oficina Cultural Oswald de Andrade. Possui livros autoeditados e publicações por editoras como nunc edições de artista + Edições Aurora/Publication Studio SP e plataforma par(ent)esis. Participou das residências Enter Text – Arteles, Finlândia (2019) e Casa do Papel – Flip, Paraty-RJ (2017). Também atua na Pinã Cultura, realizando curadorias educativas, formações de equipe para exposições de arte e projetos editoriais.

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