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Prefácio de Carne falsa

por Manoel Ricardo de Lima*

imagem n.1 – [objeto embutido]


Uma lata de conserva com sobras de carne embutida é o objeto ausente de uma pequena cidade que foi transformada, a partir de uma economia de guerra e capital

circulante, em matadouro privado. A condição frigorífica e a violência da riqueza acumulada que essa cidade é capaz de gerar engole a todos e tudo ao redor. Contra

isso, nada. Ou duas possibilidades: partir e rasgar a conserva com a força da mão.

imagem n.2 – [carne e faca]

Esteban Echeverría, argentino, escreve El matadero entre 1838 e 1840. Desenha um quadro vertiginoso de costumes e a deliberação do político durante uma ditadura

e a ordem do terror: faltam vacas e é preciso matar, violentamente, o gado novo.

O progresso é técnico, ou seja, está mantido o inferno. Não sei se Patrícia Galelli
leu o conto de Echeverría, mas seu livro – escrito agora, tantos anos depois – reabre

a imagem do testemunho ao tentar rasgar com a mão a película de estanho que
compõe toda lata de conserva.

imagem n.3 – [boca e osso]


Carne Falsa é boca, apetite e sintoma de quem precisou partir. E, como tal, um modo

de arrancar do horror presente, organizado pelo poder cretino do dinheiro, numa

contrassenha, alguma esperança para o corpo, alguma sobrevivência através do corpo: fome de vida, despudor, sexo, pulsão de morte. Por isso é um livro que traça um

dispêndio sanguinolento e ilimitado. Foi Flávio de Carvalho quem disse que o apetite

é o primeiro instinto de propriedade do homem, que é pela fome que o homem
entra em contato com o mundo animal e vegetal que ele devora, que o ato de devorar

é a primeira religião do homem. A fome gera o ataque e a carícia; ou seja, a guerra

e a satisfação do sexo.


imagem n.4 – [desvio e raiz]


Patrícia Galelli nos coloca, delicada e com imaginação, diante de uma máquina de triturar almas, porque todo sintoma é queda. Arma uma semelhança e dá a ver um homem

que só quem viveu dentro da câmara fria seria capaz de esboçar com prudência e necessidade. E aí, num desvio, não é autora, não faz apenas literatura, isto é pouco,

ainda mais se pensamos nessa bobagem comezinha que o cinismo do comércio, como um matadouro, reproduz aos montes pelo país. Ela excreve as suas figuras tentando sobreviver desequilibradas sobre uma superfície toda composta de ossos, os restos de

uma “linguagem das flores” de ponta-cabeça no apodrecimento de sua própria raiz.

* Manoel Ricardo de Lima é professor do PPGMS e da Escola de Letras, UNIRIO. Publicou, entre outros, "Falas Inacabadas" [com Elida Tessler], "Pasolini: retratações" [com Davi Pessoa], "Geografia Aérea","Entre Percurso e Vanguarda - alguma poesia de P. Leminski", "A forma-formante: ensaios com Joaquim Cardozo", “As Mãos”, "Jogo de Varetas" e "Maria quer o mundo". Organizou “A visita” [com Isabella Marcatti] e “A nossos pés”. Co-dirigiu “Só tenho um norte:” e é co-roteirista do longa-ficção “LINZ – quando todos os acidentes acontecem” [direção Alexandre Veras]. Coordena a coleção Móbile de mini-ensaios [Lumme Editor] e coordenou a edição da obra completa de Ruy Belo no Brasil [7Letras].

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