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filme de rio, ou anatomia de River film

por Patrícia Galelli

nada da bacia hidrográfica de um homem chega ao mar, nada de um homem evapora. circuito contido, sistema pressionado. num rio não é assim. um rio se alimenta quando chove e corre como lhe convém o tempo. um rio não nasce do olho, mas do choro. um homem é sempre um organismo sem chuva.

dois rios de uma mesma nascente não são o mesmo nem são iguais. Tijucas, acanhado, assume velocidade aguda. Itajaí-açu, espaçoso, se espreguiça e espelha cidade. os dois seguem seus cursos, cada qual por uma topografia, mas chegam juntos, ainda que a quilômetros de distância. um homem, não. um homem nasce sozinho, ainda que divida o útero. e morre sozinho, ainda que divida a vida.

entre dois rios e um homem, músculo e musgo, sangue e água. veias, artérias, capilares. arroio, braço, desaguadouro. estratagemas do corpo de um ao leito dos outros, abandonos e ausências, ócios e sobras. a circulação não cessa, se molda sem tomar forma: no homem o tecido líquido se envolve em vasos linfáticos. nos rios a água degenera organismos insólitos, esbarra no pé de uma ponte, desliza barragem abaixo, tão exata e frouxa e intensa a água é. o homem bombeia o sangue de artéria em aorta, ou em arco, ou em veia, ou vice-versa. gasta nutriente, leva oxigênio, gás carbônico, uma limpeza completa ou se bloqueia. sem rompimento: fluxo da vida acesa do homem. essa vida que ele quer calma, mas que, decidida, não remedia nada.

a vida de um homem é sempre uma resistência de vida. estrada. porto. venda. ponte.

submerso no corpo do homem o ciclo perpétuo do sangue – até que o relógio pare e, impiedoso, o tempo se encarregue do  fim da anatomia, uma ciência inteira que desliza ao subsolo dos rios. a foz do homem é seu mistério. um rio e um homem. quem habita quem? um rio invariavelmente evapora. cíclico perpétuo. a foz do rio é sua chegada. um rio tem sempre para onde ir e sabe.

a vida de rio é sempre uma sequência de vida. nascente. afluente. confluência. drenagem.

um rio nunca é o mesmo. nunca pesa, nunca analisa. traz em si uma dureza íntima, memória nebulosa ainda que despida. um homem também é único, embora nunca isento. é pesado, explora, examina. mas, apesar de pequeno, lhe cabe em algum lugar do corpo os dois rios inteiros. cabe no homem o mar.

o oceano. 

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Escrevi esse texto a partir do trabalho “River film – cíclico perpétuo” (2011-2016), de Helder Martinovsky. Também fez parte do conjunto de textos para a exposição “RIVER FILM / pedra-fantasma / mar paradoxo”, de Helder Martinovsky e Raquel Stolf, no Museu da Imagem e do Som de Santa Catarina (MIS-SC), de julho a setembro de 2017.

Eu vou com os rios das imagens de Helder todas as vezes que relembro o ritmo daquelas águas. me refaço, finjo que não morro e que me cabe até o mar. escoo também e às vezes volto para minha foz, me faço uma vida de rio, começo de novo – erro melhor na vida de homem, água-resistência. é a pedra que se molda, afinal.

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para Helder Martinovsky

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