Integra a Coleção #Formas Breves, da e-galáxia (São Paulo: e-galáxia, 2014, e-book), organizada por Carlos Henrique Schroeder.
Nesta narrativa, fragmentos moldam uma máscara e levam o leitor para a “visão instantânea que nos faz descobrir o desconhecido, não numa longínqua terra incógnita, mas no próprio coração do imediato”, como queria Rimbaud. “... aqui de baixo observo uma Gávea sem rumo, aconselho à pedra ficar em paz com a geologia. a vida, sobretudo a vida das pedras, não pode ser só uma questão de fratura e abismo. pedra tem família, sim, mas a geologia não tem culpa do tempo gostar que tudo se dane”.
TRECHO
Pedra
líquens não perdoam fácil. é por isso que me sinto em pedaços, dor nas costas, sem tratamento homeopático ou químico. os líquens são poderosos, todos eles que ficam atacados de gastrite infernal (dizem que são as ações bioquímicas, mas é só o ácido clorídrico dentro deles). esse líquido dos líquens não perdoa. desorienta. quem paga por isso? eu, que a queima das paredes gástricas dos líquens, amaldiçoadas pela insolação, mais a chuvarada de tempos em tempos, me causam desplacamentos contínuos ao longo das minhas fraturas verticais – que dizem que são os paredões, mas na verdade é o meu corpo. e dizem lindos demais, mas só porque eu não sou o corpo deles.
Homem
num muro da estrada lagoa-barra enquanto volto para casa, vejo o cartaz: buzios e tarot - 2452.5010. penso em ligar e testar o jogo com alguma aberração do pensamento rápido; perguntaria o que querem dizer as inscrições talhadas na pedra da Gávea, mentalizaria o mistério por telefone e a energia correria a fibra ótica direto para as mãos da mãe do tarô. mas não tenho tempo para brincadeira, não gosto de comunicação e hoje foi um dia insuportável.
não sou turista, nem poderia – é uma longa história; aprendi rápido que mais vale uma verdade simples que a desolação amarela do esforço em vão desses arqueólogos, que querem comprovar um fato modificado pelo tempo. em minha opinião, e na dos céticos, fato é que sobre essa pedra há mais farsa do que vegetação.
Eu
poderia se olhar no espelho do mar, lá de cima, pedra alta mais de 800 metros, mas está com a concentração na força dos liquens, em estado introspectivo – com crise de identidade. da Gávea, um túmulo egípcio, uma tumba de um rei fenício, um modelo de cartão postal, um fundo de fotografia de turista, quem é que pode saber?, e a pedra Bonita, ao lado, sugere um Lexotan 6 mg, como se soubesse ciência psiquiátrica. que a pedra da Gávea, ou tudo o que ela pode ser, é bem alérgica a bromazepam; e, além disso, é comprimido, esse, que regula a menstruação, correnteza que pedra não tem.
vai fazer bem correr um pouco à beira mar de São Conrado, eu grito aqui de baixo com desejo de melhoras; mas as duas pedras, estáticas como são, apenas observam a rasura espumada das ondas na praia.
Homem
arqueólogos enguiçam minha imaginação. rota complexa a deles: não param de catar a origem da cara da pedra, não param de entrar no ouvido da pedra, não param de pisotear a cabeça da pedra. a mãe do tarô não me diria nada. minha pedra cardiovascular carrega um fracasso iminente. eu não sou arqueólogo, eu queria ser turista, eu estou à beira de um surto.
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