drenar, transitivo direto
por Patrícia Galelli
encontrei você na boca. ensaiei uma biografia ideal para me apresentar, mas meu discurso, como um traidor, também me biografa. a primeira vez que te vi, você posava com cara de tonto ao lado de uma lápide. eu imaginei tanta coisa desde aquela fotografia, mas o que eu queria era desvendar você. o máximo que consegui foi criar uma pequena obsessão que dizia “esse é o cara, esse é o cara, esse é o cara”e isso não parava.
a anemia do tempo deixava uma coleção de bulas pela casa, o tempo era fraco demais para suportar o encontro, eu supunha, e subtraía todas as minhas experiências com você. eu criei tempos lentos, ainda que mais radicais, para estar junto cada vez que você me faltava.
eu fecho os olhos, como se a insônia não fosse minha única relação com as pessoas, e a estrutura que aporta nosso tempo-que-crio se abre. a partir dessa brecha, vetorizo teu corpo com a ponta da língua; no correr desse escâner eu transformo cada pedaço de ti em representação numérica. decifro a volta do teu pescoço, o fim dos teus dedos, a curva da tua orelha, a tua nuca; um ponto atrás do outro, calculo com exatidão o teu prazer. a localização exata do nosso encontro. sempre fiz isso.
eu dreno tua dor pela garganta e meu esôfago escoa tua infecção para dentro; me acordei com o cheiro horrível que isso deixou na minha pele.
você
me
mandou
ir
à
merda
e ontem acordei amortecido, esse cheiro me converteu em feto abortado. fui à merda, fui, ainda estou com gosto de cu na boca. dei um nó no tubo, fiquei remoendo o meu esôfago. eu vomitei meu esôfago e depois engoli de volta. “esse é o cara”. te vomitei e também os cálculos que fiz pra amar você.
chegava devagar, na cadeira de rodas. você estava velho, a barriga era enorme e nitidamente eu via quase todo o couro cabeludo. era frágil, te empurravam, mas estava sozinho; você doía. apertei as pálpebras, porque também me doía te ver, mas você não fazia ideia que eu existisse. quando te serviram, muito lentamente botou alguma coisa na boca; mastigou com nojo, e eu vi teus dentes podres a ponto de caírem. você estava tão feio, tão feio. eu olhava de longe, via a barriga enorme, cabelos brancos, você desprendendo a cabeça, a cadeira de rodas com reforço pra dar conta de você. estava ridículo, a camisa úmida do suor doente, as meias por cima das calças para vedar o vento, tua barba com rastros de baba. estava ridículo e eu senti tanto amor por você.
senti pavor de pensar que você morreria. você, que gostava de observar todo mundo, agora perdido, olhando o prato, à procura da vida ali naquele arroz. e fiquei pensando que talvez você tenha levado partes de mim, que talvez estivesse escondida muita coisa da minha alma na tua barriga.
o teu jeito de fazer as coisas. você torce minha coluna, você calcula pela razão oposta ao prazer a maneira mais trágica pra eu gostar de você. e depois some, rato de gaveta que não passa em nenhuma fresta. um pesadelo atrás do outro. então você aparece, me dá um puta susto e eu tremo, tremo; fico tremendo, epilético, enfiado num interruptor – 220 volts de ódio de você.
sabe, o músculo que se contrai não se dá conta de onde vem o impulso nervoso que desencadeia o potencial de ação, ele se contrai. simplesmente se contrai. mas uma cadeira em que falta um braço, um barco sem o remo, um trampolim que não tem sistema de suspensão, essas coisas não se dão conta da falta de suas partes e, no entanto, não saberiam também se fossem completas. posso vetorizar coisas, consertar ou melhorar elas, mas não posso transformar em vetor o movimento do músculo, o sódio que entra ou o potássio que sai das células.
apesar de saber disso, insisto. eu afundo na intenção de reprojetar tudo o que é você e o que vem de você. não aceito outros projetos, porque estou sobrecarregado, você me dá muito trabalho, viu. o que se faz depois do ódio?
encontrei você no estômago. desintegro teu corpo com um pouco de ácido clorídrico; no correr desse escâner eu esterilizo cada pedaço de ti para só então te absorver de novo. mas não dá, eu não posso. isso não sai desse tom porque nunca fiz nada extraordinário na vida a ponto de conseguir tomar uma decisão enérgica, de fazer alguma coisa que não seja clichê ou de causar a reviravolta nessa história. de qualquer maneira, obrigado por ter vindo, lindo. vi que você gostou do vinho, que bom - e caiu drenado.
“era o cara”.
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Conto publicado na antologia "Cobain: 25 contos inspirados em 25 anos do álbum Nevermind", da banda Nirvana, organizada por Sérgio Tavares, publicada em setembro de 2016.
Autores: Alessandro Garcia, Alexandre Nobre, Anderson Fonseca, André Tartarini, André Timm, Bruno Liberal, Daniel Osiecki, Débora Ferraz, Delfin, Flavia Iriarte, Flavio Torres, Helena Terra, João Vereza, Maikel De Abreu, Mariel Reis, Marcia Barbieri, Mário Araújo, Maurício de Almeida, Moema Vilela, Paulino Júnior, Patrícia Galelli, Rafael Mendes, Rafael Sperling, Sérgio Tavares, Tiago Velasco