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Apresentação de Carne falsa

por Ricardo Corona*

Carne falsa é o livro de estreia da escritora catarinense Patrícia Galelli e vem com narrativas que apontam para uma dislexia literária - não sei se é permitido dizer isso,

mas entenda-se menos em seu sintoma moderno e mais em seu sentido na antiguidade grega, que é a junção de dis (distúrbio) e exis (palavra). Neste sentido, há certa proximidade com o estoicismo, pois aqui pouco importa o que e como se diz, mas
sobre como se comporta aquilo do qual se diz. É assim que a autora arma uma escrita potencialmente giratória, curta e em torno de alguns poucos temas que engolem toda

e qualquer fixidez.


É uma escrita obsessiva e calcinada com falas de figuras semi-arranjadas, vozes perturbadas e perturbadoras. Porém - e isso é importante -, essas vozes vêm ressoadas do limite e do lugar que ocupa o vivente pós-pandora. Ora, a cada narrativa, a autora vai jogando com ironia e clichês essas vozes alteradas em figuras espectrais que poderiam estar na boca rosada de Maldoror em devir-mulher, diante de si, do espelho e sem reservas. Patrícia Galelli, antes de abalar o alicerce do pensamento masculino com
narrativas travestidas de discursos, parece enxergar o que nele está ainda recalcado e escamoteado. Suas narrativas não escondem o majestoso edifício que se ergueu às categorias universais. É, talvez, a consumação da grande ironia que Silviano Santiago
apontou: "o Homem (aquele do séc.XIX, com H maiúsculo e representante dos valores universais), é hoje recolocado na categoria de minoria. Em outras palavras: o que representa hoje, após o feminismo, a antiga e universalizante noção de homem?"

Patrícia Galelli já vive esse tempo pós-Homem.

 

 

* Ricardo Corona é mestre em Estudos Literários (UFPR) e atua nos campos da poesia contemporânea brasileira e hispano-americana, estudos de relação entre as áreas artísticas (performance, poesia sonora, artes visuais), tradução, linguagem e cultura. É autor dos livros Curare (Iluminuras, 2011), Amphibia (Portugal, Cosmorama, 2009), Corpo sutil (Iluminuras, 2005), Tortografia, com Eliana Borges (Iluminuras, 2003) e Cinemaginário (Iluminuras, 1999). Na área de poesia sonora, gravou o CD Ladrão de fogo (2001, Medusa) e o livro-disco Sonorizador (Iluminuras, 2007). Organizou a antologia bilíngue (português-inglês) de poesia Outras praias / Other Shores (Iluminuras, 1997). Com Joca Wolff, traduziu o livro-dobrável aA Momento de simetria (Medusa, 2005) e a coletânea Máscara âmbar (Lumme, 2008), de Arturo Carrera e, esparsamente, traduções de Henry Michaux, Gary Snyder e William Carlos Williams. Com Mario Cámara, Daniel Link, Reinaldo Laddaga, entre outros estudiosos da literatura hispano-americana, participa do livro La poesía de Arturo Carrera - Antología de la obra y la crítica, organizado por Nancy Fernández e Juan Duchesne Winter (Press Universidade de Pittsburgh, 2010).

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