as covas
por Patrícia Galelli
no dia em que morreu uma pessoa por minuto
no brasil meu olho não prega a peça do descanso
(coronavírus é um vírus é um vírus
que não é uma gripezinha)
quis adiantar o cotidiano aos trancos da madrugada
- olho que não prega, nem fecha, não descansa
no dia em que morreu uma pessoa por minuto
quis quebrar o pacto ficcional com a realidade
quis que fosse fake news que fosse um robô
a pós-verdade que fosse, queria
que cada pessoa fosse minha amiga para sempre
que tivesse tomado café na minha casa
que comesse o pão que eu faço jogando
os ingredientes na máquina de pão
água, açúcar, sal, óleo, farinha, fermento
amassa a insônia no pão de máquina
que por três horas, enquanto o pão é feito,
a gente,
cada pessoa é uma pessoa é uma pessoa,
quis que cada pessoa que morreu a cada
minuto tivesse aproveitado três horas de prosa
enquanto a máquina fizesse o pão que cada pessoa
me contasse o que gosta de passar no pão
com que fruta faz geleia, a receita da vó,
como ralou o joelho de criança, a criança
de cada pessoa que morreu, o jogo de sonhar
e de dizer o que cada pessoa que morreu queria
ter sido quando crescesse, o que foi quando cresceu,
que cada criança que foi
cada pessoa que morreu tivesse brincado
aqui na sala, lido em voz alta um livro preferido
que cantasse, que soprasse o seu assovio de banho
que tivesse sorrido e se lembrasse e teríamos
também sorrido se cada pessoa que morreu a cada minuto
naquele dia no brasil não tivesse morrido
atávica, a máquina do pão enguiçada como meu sono
dispara pelos corredores do prédio um som,
grunhe um som altíssimo que belisca
os tímpanos de quem dorme injustamente:
a máquina do pão grita
: uma pessoa é uma pessoa em qualquer lugar do mundo.
o pão quebra a lei do silêncio
: queria gritar pelas setenta** mil pessoas
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a casa é um museu sem saída
é uma cidade pendurada que descola
da tinta do mapa de um país
onde uma pessoa morre por minuto
num único dia, sua única vida,
labirinto sem saída.
.
Publicado na antologia "Clausura", organizada por Rosana Piccolo, publicada pela Editora Lobo azul, em agosto de 2020, ano de pandemia do Coronavírus.
** No momento em que publico no meu site, junho de 2021, atualizo o número de mortos citado no poema para mais de 510 mil pessoas, uma tristeza absoluta causada pelo descaso e pela incompetência perversa do governo brasileiro à frente da pandemia.