Carne falsa
por Ademir Demarchi*
“Carne Falsa”, livro da escritora Patrícia Galelli publicado pela Editora da Casa, de Jaraguá do Sul, tem tiradas impagáveis. Há algo de cruel na sua escrita, um livro que prenuncia as maldades da Caixa aberta por Pandora. Não à toa o livro começa com um conto que tem o sugestivo título de “Pandora”, nome da personagem que, na mitologia, é a representação da primeira mulher que existiu, uma espécie de Eva desprovida de religião porque nasceu com o paganismo. Ela mesma veio ao mundo como uma condenação de Zeus, por uma transgressão, porque os homens receberam o proibido fogo de Prometeu. Enviada a Epimeteu, que guardava a pedido dos deuses uma caixa com todos os males do mundo, ele não resistiu aos seus encantos e à proibição divina, casando-se com ela. Proibiu-a de não abrir aquela caixa que Pandora, afinal, batizou com seu nome ao abri-la, espalhando para o mundo todas as maldades lá aprisionadas. No conto Pandora é casada com um sobrenome ilustre catarinense, que virou rua famosa um dia, mas que, no conto, desandou em açougueiro. Parece ser mais uma condenação para essa mulher que, tendo sido a primeira, quer ser a única, também desse açougueiro. Logicamente entre a fantasiosa potência aprisionadora do amor e esse carniceiro livre para matar há um abismo. Por isso ela esganiça como se todos os seus hormônios tivessem passado pelo acelerador de partículas. Pandora é uma escrava do amor, essa que não se pode dizer que é a maior invenção da humanidade porque junto com ela tem que se por também o capitalismo, ambos refinados em se usufruírem um do outro. E Pandora é escrava do amor porque constrói sua existência a partir desse entendimento que formata sua cabeça como uma prisão da qual não sai e que deixa de ser dourada quando o pássaro masculino que quer aprisionar nela a olha de fora, livre, entendendo o amor a partir de seu vigor físico e sexual que justamente alimenta nela o caminho para o paraíso, na direção do qual ela toma o atalho para sua prisão. Ela o acua no box, enquanto ele toma banho, num prenúncio hitchcockiano de que uma faca cairá sobre ele, ainda que essa faca acabe sendo apenas o palavrório agônico anunciado por Hesíodo na Teogonia, de que Pandora, como todas as mulheres, trazem problemas aos homens, pobre mortais… Fique o leitor, então, com as tiradas saídas dessa caixa da Patrícia: “”não consegue mais transar. ela sofre de tristeza específica; ela não suporta mais ser um colchão com buraquinho”; “não ligo se não gozo – eu não gozo. nem com os homens que tenho saído. eu tempero os corpos para outra comer depois”; “não sei como vai ser quando ele chegar. é tão amável, me enoja”; “ao meu lado, ele me faz viver sozinha, então eu não sei por que enlaço meu braço nele e deixo minha mão descansar ali na pança para dormir”; “sou uma mulher invertebrada, um cogumelo à espera da industrialização para ser comida de uma vez e, enfim, me encontrar na alucinação de alguém, ninguém”; “ele parecia sempre, porque eu nunca consegui passar a certeza no pão e me satisfazer”; “do ponto de vista dele à porta do guarda-roupa dava cerca de três metros”; “Antonio Carlos chegou assim, com olhos de sobrevivente de Auschwitz, nos desencontros entre os ‘poderias’ que já foram”; “tenho aqui dentro uma ferida toda azul, de tanto guardar o amor num cantinho do freezer”; “que leitor de jornal veria nas pálpebras fechadas da editoria de polícia aquele montinho de merda pelado, com hemorragia anal, jogado no corredor fétido entre as baias masculinas?”; “você se limpa, escova os dentes e sai. assexuadamente, continua a reprodução do seu fim, vou lhe pregar uma surpresinha na volta. devolvo seu sobrenome”; “ela ainda lembrava, muito vagamente, os olhares dos meninos na praia. o mar era insignificante. era a isca que o sol usava para que mais camarões morressem de câncer de pele”; “ela, um camaleão. pediu vodca. não tinha. a união soviética do seu peito se desmontou”. “feliz, coitado. mas é mentira, porque ele é quem não existe. ele é que foi só um produto das minhas ideias – comprado no crédito, parcelado em dez, sem juros”. – Poesia pura. Gozei.
Publicado anteriormente no site Musa Rara, em março de 2014.
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* Ademir Demarchi nasceu em Maringá e reside em Santos há 15 anos, onde trabalha como redator. Formado em Letras/Francês, com Mestrado pela Universidade Federal de Santa Catarina (1991) e Doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (1997), foi editor da revista Babel, de poesia, crítica e tradução, com seis números publicados de 2000 a 2004. É autor de Passagens – Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná (Imprensa Oficial do PR, 2002); Volúpias (poemas, Florianópolis: Editora Semprelo, 1990); Espelhos incessantes (“livro de artista” com poemas do autor e gravuras de Denise Helena Corá, edição dos autores, Santos: 1993; exposto no Museu da Gravura em Curitiba no mesmo ano); Janelas para lugar nenhum (poemas, com linoleogravuras de Edgar Cliquet, edição dos autores, Santos: 1993; lançamento feito em Curitiba, no Museu da Gravura, no mesmo ano). Além desses trabalhos, o autor tem também poemas, artigos e ensaios publicados nos livrosPassagens – Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná; 18 Poetas Catarinenses – A mais nova geração deles (ed. e org. Fábio Brüggemann, FCC Edições/Editora Semprelo, 1991);Os mortos na sala de jantar (Realejo Livros, 2007) e Passeios na Floresta (Editora Éblis, Porto Alegre, 2008). Publica também em periódicos como Literatura e Sociedade (São Paulo, USP);Medusa (Curitiba); Coyote (São Paulo), Oroboro (Curitiba), Jornal do Brasil/Idéias; Rascunho(Curitiba); Jornal da Biblioteca Pública do Paraná; Babel (Santos); Sebastião (São Paulo); Los Rollos del Mar Muerto (Buenos Aires, Argentina) e sites, entre eles, as revistas eletrônicasGermina, Agulha, El Artefacto Literario, Tanto e Critério. E-mail: revistababel@uol.com.br.